Tadeu Bianconi, fotógrafo.
Conheci Berlim em 1986, ainda ocupada por tropas aliadas e dividida pelo ”famoso” Muro.
Ninguém, naquela época, poderia imaginar que o Muro cairia em 1989. Também passei alguns dias em Berlim Oriental mas, daquele periodo, só sobraram poucas fotos. Depois de fotografar Berlim, fui roubado em Barcelona, onde me levaram 20 rolos de filmes, com várias fotos da capital germânica.
Na época, ainda era um estudante, e aquelas cenas me fizeram compreender o que representava o Muro na vida de muitas pessoas. Uma delas, o jornalista Orlando Eller, conta em um texto o que representou o Muro em sua vivência:
O muro de Berlim em minha vida
Agraciado com gentil convite da embaixada da Alemanha Ocidental, visitei aquele país lá apelos idos de 1983. Descendente de imigrantes alemães, era óbvia minha ansiedade em pisar aquele solo. Foi de lá que, em companhia de uma leva de europeus, emigrou em 1823, por iniciativa de D. Pedro I, um Eller que deu origem aos Eller no Brasil.
Fiz parte de um grupo de dez jornalistas brasileiros que tiveram a oportunidade de conhecer, durante dezoito dias, a pujança do lado Ocidental, sustentada pelos princípios da socialdemocracia. Além de conhecer nove cidades e várias indústrias, tais como a Daimler-Benz, a Bosh, a Siemens e a Bayer, fomos recebidos em Bonn (então capital da Alemanha Ocidental) pelo Parlamento e pelo presidente do Deustches Bundesbank (o banco central alemão).
Uma vez em Berlim, fomos estimulados a conhecer o outro lado do muro, parte da cidade dividida e capital da Alemanha Oriental, então sob ocupação do governo da União Soviética. Mas, como era óbvio, sem acompanhamento diplomático. Saímos cedo do Hotel Hamburg e tomamos o metrô.
Desembarcamos em Alexanderplatz, um terminal de passageiros em praça de intenso movimento. Lembro-me dela principalmente em razão de sua gigantesca torre de televisão, de mais de 365 metros de altura, e da banca de jornais e revistas, onde não se via nudez ou algo parecido que incendiasse a libido.
Sob temperatura alguns pontos abaixo de zero, alertou-nos o jornalista Rogério Furtado, de Economia da Folha de São Paulo, de que um certo suspeito casal nos acompanhava de perto desde a passagem, onde deixamos nossos passaportes. Não o levamos a sério e houve até quem brincasse: “Olhe, esses comunistas só comem criancinhas. Já somos adultos e nossa carne é dura demais”.
Durante almoço, em restaurante todo envidraçado à margem do rio Spree, ainda com a pulga atrás da orelha Furtado abriu estreita fresta no cortinado marrom. Mirou a rua e disse: “Aquele casal está na calçada”.
E realmente estava. Durante nossa peregrinação pelos lugares mais importantes, entre os quais um extraordinário museu; em bondes ou a pé, lá estavam os dois, presentes à distância de um tiro de pedra. E bem no final da tarde, antes de regressar, saboreamos um chope. No outro lado da rua, de prontidão, novamente eles.
E pelos dois fomos, finalmente, acompanhados até a passagem do muro. Havia fila e muitos guardas armados. Quando chegou minha
vez de receber o passaporte, uma baita alemã, de gorro e armada de pistola, me disse: “Halt”! Senti que eu estava sendo detido para investigação. Vários da ostensiva colundria de comunistas me olhou atentamente (coitados dos comunistas, dos capitalistas e dos que não são uma coisa nem outra) durante uns vinte minutos. Indignado, fui obrigado a lhes apresentar outros documentos, como carteira de identidade, carteira da Fenaj, da Gazeta, enfim… até que, já não sentindo as pernas de frio e de medo, anunciei em bom alemão que eu era brasileiro; que estava indignado; e, em bom português, mandei todos eles para a puta que os pariu.
Notei então que na longa fila que se formara, houve quem achasse graça, talvez em razão do endereço ao qual acabava de mandar todos os comedores de criancinhas. Depois de uns dez minutos de constrangimento, em que me fotografaram e fizeram até cópia dos demais documentos, fui enfim liberado.
Depois, já livre no Hotel Hamburg, contei a história para o Rohde, cônsul alemão ocidental em São Paulo que nos acompanhava na viagem. Ele riu e disse: “Sabia que você iria ter problemas lá, mas que, efetivamente, não seriam além de só inconvenientes”. Eu quis saber dele por que razão. E Rohde: “Você é sósia de um dos líderes do grupo terrorista Baader Meinhoff, único ainda livre”.
Por que não me avisou? “Porque você teria desistido de sentir um pouco do que é aquilo lá, aquele pequenino pedaço da grande cortina de ferro”. Agradeci a oportunidade e emendei: “Acho que são todos tolos. Como achar que um líder terrorista sob caça, único da espécie ainda livre, iria se apresentar assim, ingenuamente”?
Não há como me esquecer daquele muro, monumento da guerra fria (esta guerra que, afinal, então podia até ter sido mas não mais está sendo a pior coisa que o homem já produziu, e que ora se acha em curso). Orlando Eller, Jornalista
Fotos: Tadeu Bianconi